[Conto] Amanhã talvez

Sabryna Rosa
4 min readJun 15, 2024

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No escuro do teatro, enquanto um ator declamava um poema, ele segurava a mão dela com leveza sem imaginar que o pensamento dela havia voado para longe dali. Ao fim do espetáculo, ele seguiu com os comentários. Elogiou a atuação da companhia, mas ressaltou que na gestão do diretor anterior eles eram ainda melhores, mais concentrados e com peças mais inteligentes. Ela não disse nada, não sabia quem era o diretor anterior e tampouco se o grupo era melhor ou pior. A noite havia esfriado e ao dobrar a esquina ele ofereceu um casaco e ela respondeu algo que ele não havia perguntado. Ela disse que não gostaria mais de estar naquele relacionamento.

Eles se conheceram naquele mesmo café, um café antigo, com as paredes desbotadas e umas duas mesas bambas que às vezes ficavam do lado de fora, às vezes do lado de dentro. Ela era uma estudante atrapalhada com as tarefas do fim do semestre e ele um professor de outro departamento. Naquele dia, ele ofereceu um café e ela aceitou. Agora ele ouvia com o semblante sério enquanto ela explicava porque os dois juntos não dariam mais certo. A mesa balançava sempre que ela se mexia.

Ela acordou antes dele e ficou ali observando-o. Ele dormia engraçado, com a boca entreaberta, sem roncos, mas com um suspiro profundo de vez em quando, como se estivesse sonhando com todos os dissabores que não podia resolver quando acordado. Abriu os olhos e quase se assustou, mas ela era bonita demais para ele se assustar. Ele perguntou se ela gostaria de esticar mais um pouquinho ou levantar de uma vez e ela disse que não voltaria a dormir com ele.

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Ela não gostava de sorvete de chocolate, nunca gostou porque achava que não tinha gosto de chocolate de verdade. Ele voltou lá de dentro com dois sorvetes de chocolate e no dela havia confetes coloridos por cima. Ela se irritou e o acusou de ser desatento, entre outras coisas. Ela precisava daquela ponta de argumento para puxar o fio até o fim.

No elevador do prédio dele, a energia caiu e os dois ficaram presos por alguns minutos. Ele começou a suar frio e ela se manteve calma, logo iriam acionar o gerador ou chamar alguém para resgatá-los, mas ele afrouxou a gravata e respirou fundo para não se desesperar. Sei que não é uma boa hora… ela iniciou e então concluiu. Quando o elevador voltou a funcionar eles já não eram mais um casal.

A tela do celular acendeu pela terceira vez e ela deixou a chamada finalizar sem atendê-la. Abriu o aplicativo de mensagens e ele, agitado, perguntava repetidas vezes o que estava acontecendo. Ela disse, então, o que gostaria de dizer ali mesmo, por meio do teclado, sem voz, sem expressões confusas cara a cara, sem toques que poderiam fazê-la mudar de ideia.

Era um sábado de sol e ele estava relaxado à beira da piscina tomando o segundo copo de gim. Ela vestia um maiô novo que apertava seus seios além da conta e incomodava. Tudo ao redor incomodava. O sol forte, a piscina límpida, o cheiro de álcool, os pés dele remexendo ao som da música que tocava em algum lugar, tudo roubava o humor dela. Ele comentou que aquela música na versão original era melhor e isso a irritou porque ela gostava daquela versão. Então ela se sentou na espreguiçadeira e pediu para que ele tirasse os óculos escuros para que pudessem conversar olho no olho.

Já estava tudo pronto, as passagens compradas, o hotel reservado, o roteiro definido. Iriam passar uma semana na Argentina, um desejo do início do namoro que não se concretizou porque as férias dele não coincidiam nunca com as dela. Agora, enquanto ele andava pelo quarto contando sobre as vinícolas, ela pensava em um jeito de dizer que não iria mais.

Todos esses não episódios passaram pela vista dela enquanto eles estavam de mãos dadas na penumbra do teatro, sob a voz do ator que declamava o poema, ele sem saber, ela sabendo demais, sufocada pela decisão. Quando? Qual o melhor momento? Aqui, em um sussurro ao pé do ouvido para não atrapalhar ninguém? Amanhã, quando ele me buscar no fim do expediente? Na ida para o aeroporto? Na volta para casa? Ele era um bom homem, mas dentro dela não havia mais nada que pudesse chamar de amor. Ela só não sabia como dizer.

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Sabryna Rosa

Leio alguns livros e escrevo outros. Autora de Cafés Amargos e Exposição de Luxo. Conheça: www.sabrynarosa.com